sábado, 15 de fevereiro de 2014

Django Livre e o "oprimido conservador"

Ontem mesmo, presenciando mais um daqueles intermináveis, porém raramente frutíferos, debates sobre cotas sociais e raciais foi que ouvi, mais uma vez, uma afirmação que me incomoda sobremaneira: “Sou negro, sou pobre, e nunca precisei de cota. Me esforcei como ninguém, passei umas poucas e boas na escola pública por isso, mas venci. Então, pra quê cota?”

Hoje, leitores, não farei aqui propriamente uma defesa das cotas. Deixarei isso para um texto futuro, no qual pretendo apresentar um cardápio de argumentos em prol da cota racial. Escreverei o que considero os dois principais raciocínios se tratando de justiça e deixarei à vontade todos aqueles que quiserem contestar essas linhas de defesa.

No presente texto, porém, tentarei responder por que diabos alguém que é negro e pobre, que admite ter vencido sobre uma carga de esforço muito maior do que qualquer branco de classe média a seu lado, pensa que todos os outros negros e pobres não precisam de coisas como cotas. Por que ele insurge contra qualquer investida que mude o mundo de forma que todos aqueles que partem da mesma condição que ele partiu (negro e pobre) fiquem em situação mais igualitária?

Assim, procurarei aqui, como no meu texto sobre a “psicologia da cantada de rua”, traçar uma potencial narrativa psicológica desses indivíduos que, mesmo reconhecendo a injustiça, querem conservar a sociedade injusta, pois, se eles não precisaram de uma sociedade nova, então ninguém precisa. O que se passa no âmago desse “oprimido conservador”?

A melhor resposta que posso dar para essa pergunta, na verdade, foi me dada pelo meu amigo, o Filósofo Paulo Ghiraldelli Jr., em dois textos: “Django: um conto alemão, um drama grego” e “A Frenologia do Personagem de Samuel L. Jackson”¹. Através desses dois textos, creio que podemos ter uma resposta interessante para a pergunta acima, pois a interpretação que Ghiraldelli fez do personagem Stephen, do filme Django Livre, é a própria narrativa psicológica desse que estou chamando de “oprimido conservador”.

Para todos aqueles que já assistiram Django Livre, Stephen é o personagem interpretado por Samuel L. Jackson, o irreverente negro da fazenda Candyland. Quando Stephen vê Django pela primeira vez, entrando a cavalo na fazenda, a cara que ele faz (essa da imagem a cima) já deveria ter rendido um Oscar para Samuel L. Jackson. A presença de Django mais que incomoda Stephen. Na verdade, essa presença o ameaça. Mas, por quê? Por que Django incomoda tanto assim Stephen?

Ora, vemos no filme que Stephen foi um negro que, apesar dos pesares, venceu na Casa Grande. Ele é um dos “negros excepcionais”, o “um em dez mil”, como diz o fazendeiro Monsiuer Candie. Stephen manda e desmanda em Candyland. Na primeira cena em que aparece, está assinando um recibo para Candie e, mais tarde, chamará o fazendeiro para uma conversa em nível de igualdade na biblioteca. Somente um “negro excepcional” fica numa posição dessas no mundo escravocrata dos brancos.

Todavia, o preço que Stephen pagou para conquistar essa posição foi muito alto. Além de toda aquela babação de ovo, Stephen se voltou não só contra os seus, os outros negros escravos, como também se voltou contra si mesmo. “Um comerciante de negros que é negro. O que é mais sujo que isso?”, Django questiona. Pois bem, Stephen se sujou nesse nível, afinal, ele não comercia negros, mas virou o senhor dos negros em Candyland. Esse foi todo o sacrifício e esforço que Stephen teve de fazer para vencer naquele mundo, o que não é pouco.

Entretanto, quando Django aparece a cavalo na frente de Stephen, ele, o negro a cavalo, é o anúncio de um novo mundo que está chegando. Sendo assim, o mundo em que Stephen venceu, aquele mundo escravocrata branco no qual ele se sacrificou tremendamente para subir, traindo os seus e a si mesmo, estava ameaçado pela presença de Django. A mensagem que o negro a cavalo passou a Stephen foi: todo esse sacrifício que você fez, toda essa babação de ovo e traição, vai perder o sentido nesse novo mundo. No novo mundo, o negro anda a cavalo sem precisar pagar um preço tão caro. Ou ainda: todo o sacrifício e esforço que você fez para vencer no mundo dos brancos, diante desse novo mundo anunciado, foram em vão.

Isso Stephen não consegue engolir. É difícil demais engolir que toda dor que ele teve de enfrentar, e toda sujeira que teve de fazer, tornando a si mesmo um monstro para vencer no mundo dos brancos é algo que no novo mundo não vale de nada. O que Stephen faz, então? Se volta contra Django, a personificação do novo mundo, de maneira a tentar  conservar o velho mundo, o mundo escravocrata branco do jeitinho que era quando ele, Stephen, venceu. Pois só assim seu sacrifício faz sentido. Stephen é o “oprimido conservador”.

Creio eu que a narrativa psicológica de Stephen vale para muitos da classe dos oprimidos, negros e pobres, que insistem em dizer que, porque venceram no velho mundo, ninguém precisa dos mecanismos do novo mundo. É que essa gente se esforçou tanto, mas tanto, para vencer nesse mundo, algumas até no nível monstruoso de Stephen, e elas mesmo reconhecem isso, que quando coisas como cotas surgem na frente delas, é como Django a cavalo: o anúncio de um novo mundo; um mundo onde negros e pobres como elas não precisarão pagar um preço tão caro assim para vencer.

Sendo assim, a injustiça para elas não consiste em outros negros e pobres terem que se esforçar muito mais que brancos de classe média nesse mundo. A injustiça para elas é, no novo mundo anunciado, negros e pobres não terem de se esforçar o tanto quanto elas tiveram de se esforçar no mundo presente para vencerem. Isso as ameaça diretamente na alma.


Falando nisso, lá vem ele, Django a cavalo... 



1 - O título desse texto, "A frenologia do personagem de Samuel L. Jackson", ele agradece a mim e diz que "usou sem licença". Pois agora eu uso o texto dele "sem licença" e agradeço também.

2 comentários:

  1. Gostei do texto. De certa forma, parece complementar os textos do Paulo Ghiraldelli, completando "a imagem" desta situação levantada por ele e que parece ser bem verdadeira. Achei uma boa interpretação das ideias do Paulo. Um trecho que gostei muito é "...indivíduos que, MESMO RECONHECENDO a injustiça, querem conservar a sociedade injusta". Acho que identifico alguns "tipos" assim, que vivem à minha volta.

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  2. O “oprimido conservador”. Gostei do seu texto, garoto!

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