terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

"A Vida é um Livro"


Estava eu voltando de uma viagem a trabalho quando peguei um táxi no Aeroporto Afonso Pena. Entrei no carro, cumprimentei o taxista, dei meu endereço, e puxei papo como se puxa qualquer conversa (ou mesmo pseudoconversa) na região de Curitiba: "E esse tempo, hein?" 


Papo vai e papo vem e, então, a conversa se mostrou claramente mais que uma pseudoconversa. Não somente porque qualquer assunto diferente do clima local prosperava, mas também porque o taxista Luis Carlos acabou sendo mais uma daquelas pessoas que me contou a sua vida.

Bem, o Luís, de São José dos Pinhais, 60 anos, me contou bastante coisa; mas o que mais me chamou a atenção foram dois trechos em particular: sua admiração pelo bisavô, que era alemão e que teria vindo ao Brasil um pouco antes da segunda guerra; e a sua história como empreendedor de uma loja de brinquedos.

Começou Luís: "Meu bisavô me disse uma coisa quando eu era menino que eu nunca vou esquecer: "Luís, qualquer dia desses você vai viver preso dentro de casa; e o seu dinheiro não conseguirá comprar mais nada". E Luís completou: "e isso realmente aconteceu: hoje vivemos em lugares cheio de grades e, de certa forma, na época da inflação, meu bisavô teve razão".

O taxista Luís é daqueles que acha que o mundo está muito maluco. Segundo ele, o mundo mudou muito. A geração dele "não entende mais nada", os valores estão muito relativos. Acho que Luís e Bauman se dariam bem, vai saber...

Da sua tese sobre os valores, o taxista emendou: "eu me entendo como um cara de palavra. Acho que promessa é promessa. Se eu combinar com você que estarei às 3 horas ali na praça 'tal', estarei lá até antes". No momento, achei que essa comparação entre valores sólidos e "ser alguém de palavra" era apenas algo lateral na tese do taxista; mas não era. 

O que ele viria a me contar a seguir talvez fosse uma das experiências mais marcantes da vida dele: daquelas experiências de vida tão marcantes que não se pode fazer outra coisa com elas a não ser contá-las mil vezes, para ressignificá-las mil vezes de modo a poder conviver com a marca.

Ao acabar de falar sobre a tese cotidiana dos valores sólidos que estão se perdendo, e da importância de ser um homem de palavra, Luís confessou: "eu me ferrei por conta de um rico que não tinha palavra".

Contou-me, então, que antes ser taxista, fabricava brinquedos. Tinha um negócio mais ou menos estável na década de 1980. Durante sua trajetória, conheceu um fidalgo de Curitiba, hoje politico, que lhe fez um pedido de 30 mil brinquedos para uma festa de começo de ano. Luís trabalhava com uma produção de 10 mil e, por isso, pediu empréstimo a Deus e o mundo para poder dar conta da demanda. Ele falava até em valores muito específicos (20 milhões), mas que na moeda da época não faço ideia de quanto valeria. Veremos adiante que valia muito. 

Fabricou os 30 mil brinquedos na base de muito suor mas, como o fidalgo tinha uma alma de político, fez a promessa ao taxista e não cumpriu: "Olha, Luís, não vai dar pra comprar seus brinquedos. A festa não acontecerá mais...". Sem contrato, só com uma palavra desonesta em mãos, Luís ficou com os 30 mil brinquedos em estoque e endividado. 

Para piorar a situação, a década de 1990 chegou e, junto a ela, a inflação da época, que tornou a dívida algo insustentável. "Tive de vender a casa para pagar minhas dívidas. Foi-se meu dinheiro e minha casa. Com isso, foi-se meu casamento e minha família", lamentou.

Triste pela história, percebo que chegamos a minha casa. O trajeto de táxi havia acabado e a história de Luís, por consequência, também. Então, o taxista me disse: "Hoje só acredito se o negócio for assinado em papel. Mas, tudo bem. Tudo aquilo já passou... Como já disse meu bisavô: a vida é um livro". E deu um sorriso conclusivo.

Confesso que até agora estou pensando no que o bisavô dele quis dizer com isso e, mais importante que isso, como essa frase faz Luís superar continuamente essa traumática experiência. Talvez signifique que apesar de tudo, a vida tenha final feliz, como muitos livros infantis; ou uma trajetória inesperada, dolorosa, mas que passa, como muitos romances. Ou talvez nós sejamos os autores do livro da nossa vida e, diante de uma experiência como aquelas, só nos resta reescrever e reescrever aquilo até que vire uma literatura que faça sentido para nós.

Paguei a corrida, dei boa noite ao taxista Luís e pensei: se a vida é um livro, esse taxista acabou de escrever algumas interessantes linhas na minha obra. Dedico essas palavras a todos os co-autores da minha vida.

Um comentário:

  1. Concordo... a vida é um livro.
    Quando criei meu blog foi no intuito de deixar registrado alguns trechos da minha vida.Evitar que se evapore.
    Assim como você fez, e como talvez o faça inúmeras vezes por décadas ainda, o taxista ao contar a quem lhe der ouvidos, uma pagina da vida dele.
    Gostei muito da forma que escreves.

    Muita Luz e Paz
    Abraços

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