Ontem mesmo, presenciando
mais um daqueles intermináveis, porém raramente frutíferos, debates sobre cotas
sociais e raciais foi que ouvi, mais uma vez, uma afirmação que me incomoda
sobremaneira: “Sou negro, sou pobre, e nunca precisei de cota. Me esforcei como
ninguém, passei umas poucas e boas na escola pública por isso, mas venci.
Então, pra quê cota?”
Hoje, leitores, não farei aqui propriamente uma defesa das cotas. Deixarei isso para um texto futuro, no qual pretendo
apresentar um cardápio de argumentos em prol da cota racial. Escreverei o que considero os
dois principais raciocínios se tratando de justiça e deixarei à vontade todos
aqueles que quiserem contestar essas linhas de defesa.
No presente texto, porém,
tentarei responder por que diabos alguém que é negro e pobre, que admite ter
vencido sobre uma carga de esforço muito maior do que qualquer branco de classe
média a seu lado, pensa que todos os outros negros e pobres não precisam de
coisas como cotas. Por que ele insurge contra qualquer investida que mude o mundo
de forma que todos aqueles que partem da mesma condição que ele partiu (negro e
pobre) fiquem em situação mais igualitária?
Assim, procurarei aqui, como no meu texto sobre a “psicologia da cantada de rua”, traçar uma potencial narrativa psicológica desses indivíduos que, mesmo reconhecendo a injustiça, querem conservar a sociedade injusta, pois, se eles não precisaram de uma sociedade nova, então ninguém precisa. O que se passa no âmago desse “oprimido conservador”?
A melhor resposta que posso dar
para essa pergunta, na verdade, foi me dada pelo meu amigo, o Filósofo Paulo
Ghiraldelli Jr., em dois textos: “Django: um conto alemão, um drama grego” e “A Frenologia do Personagem de Samuel L. Jackson”¹. Através desses dois textos,
creio que podemos ter uma resposta interessante para a pergunta acima, pois a
interpretação que Ghiraldelli fez do personagem Stephen, do filme Django Livre, é a própria narrativa
psicológica desse que estou chamando de “oprimido conservador”.
Para todos aqueles que já
assistiram Django Livre, Stephen é o
personagem interpretado por Samuel L. Jackson, o irreverente negro da fazenda
Candyland. Quando Stephen vê Django pela primeira vez, entrando a cavalo na
fazenda, a cara que ele faz (essa da imagem a cima) já deveria ter rendido um Oscar para Samuel L.
Jackson. A presença de Django mais que incomoda Stephen. Na verdade, essa
presença o ameaça. Mas, por quê? Por que Django incomoda tanto assim Stephen?
Ora, vemos no filme que Stephen
foi um negro que, apesar dos pesares, venceu na Casa Grande. Ele é um dos “negros
excepcionais”, o “um em dez mil”, como diz o fazendeiro Monsiuer Candie. Stephen manda e desmanda em Candyland. Na primeira
cena em que aparece, está assinando um recibo para Candie e, mais tarde,
chamará o fazendeiro para uma conversa em nível de igualdade na biblioteca.
Somente um “negro excepcional” fica numa posição dessas no mundo escravocrata
dos brancos.
Todavia, o preço que Stephen
pagou para conquistar essa posição foi muito alto. Além de toda aquela babação
de ovo, Stephen se voltou não só contra os seus, os outros negros escravos,
como também se voltou contra si mesmo. “Um comerciante de negros que é negro. O
que é mais sujo que isso?”, Django questiona. Pois bem, Stephen se sujou nesse
nível, afinal, ele não comercia negros, mas virou o senhor dos negros em Candyland. Esse foi todo o sacrifício e esforço que Stephen teve de fazer para
vencer naquele mundo, o que não é pouco.
Entretanto, quando Django aparece a cavalo na frente de Stephen, ele, o negro a cavalo, é o anúncio de um novo mundo que
está chegando. Sendo assim, o mundo em que Stephen venceu, aquele mundo
escravocrata branco no qual ele se sacrificou tremendamente para subir,
traindo os seus e a si mesmo, estava ameaçado pela presença de Django. A
mensagem que o negro a cavalo passou a Stephen foi: todo esse sacrifício que
você fez, toda essa babação de ovo e traição, vai perder o sentido nesse novo
mundo. No novo mundo, o negro anda a cavalo sem precisar pagar um preço
tão caro. Ou ainda: todo o sacrifício e esforço que você fez para vencer no mundo dos
brancos, diante desse novo mundo anunciado, foram em vão.
Isso Stephen não consegue
engolir. É difícil demais engolir que toda dor que ele teve de enfrentar, e
toda sujeira que teve de fazer, tornando a si mesmo um monstro para vencer no mundo dos brancos é
algo que no novo mundo não vale de nada. O que Stephen faz, então? Se volta contra
Django, a personificação do novo mundo, de maneira a tentar conservar o velho mundo, o mundo
escravocrata branco do jeitinho que era quando ele, Stephen, venceu. Pois só assim seu
sacrifício faz sentido. Stephen é o “oprimido conservador”.
Creio eu que a narrativa
psicológica de Stephen vale para muitos da classe dos oprimidos, negros e
pobres, que insistem em dizer que, porque venceram no velho mundo, ninguém
precisa dos mecanismos do novo mundo. É que essa gente se esforçou tanto, mas
tanto, para vencer nesse mundo, algumas até no nível monstruoso de Stephen, e elas mesmo reconhecem
isso, que quando coisas como cotas surgem na frente delas, é como Django a cavalo:
o anúncio de um novo mundo; um mundo onde negros e pobres como elas não
precisarão pagar um preço tão caro assim para vencer.
Sendo assim, a injustiça para elas não consiste em outros negros e pobres terem que se esforçar muito mais que brancos de classe
média nesse mundo. A injustiça para elas é, no novo mundo anunciado, negros e pobres não
terem de se esforçar o tanto quanto elas tiveram de se esforçar no mundo presente para
vencerem. Isso as ameaça diretamente na alma.
Falando nisso, lá vem ele, Django
a cavalo...
1 - O título desse texto, "A frenologia do personagem de Samuel L. Jackson", ele agradece a mim e diz que "usou sem licença". Pois agora eu uso o texto dele "sem licença" e agradeço também.