quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

A psicologia da "cantada de rua"

Já é relativo consenso entre as mulheres. Não importa se ela é feminista declarada ou não: a “cantada de rua” é uma coisa que, se não é violenta, ao menos é de muito mau gosto. Nesse caso, meus amigos homens, não adianta ficar querendo espernear, debater, querer fazer apologia da "cantada", porque a verdade é que elas, as mulheres, não gostam de “cantada de rua” e ponto final. O caminho inteligente aqui não é ficar esperneando, mas fazer um esforço compreensivo. 


Ontem li um texto intitulado “O que os homens não entendem sobre cantadas”. Nele, a autora buscava inserir o leitor na psicologia feminina diante da “cantada de rua”, quase num esforço empático, dizendo que o que precisa ser entendido é que as mulheres não só tem nojo desse tipo de cantada, como também tem medo: medo do stalker, medo do estuprador e etc. É um medo legítimo, dado o índice de violência contra a mulher e o que elas passam no dia a dia.

Pois bem, aqui eu gostaria de adicionar uma perspectiva. Buscar responder o por que da “cantada de rua”, mesmo não funcionando como cantada, é insistentemente utilizada. Nesse esforço, tentarei dizer também o que homens, e mesmo muitas mulheres, não entendem sobre “cantadas de rua”, mas do ponto de vista da psicologia masculina.

Primeiramente, acho que é preciso fazer uma distinção, pois a “cantada de rua” já é um gênero específico; é diferente de “elogio”, ou mesmo de “chegar em mulher”. A “cantada de rua” é um uso da linguagem específico que todos conhecemos: trata-se da expressão verbal, ou mesmo corporal, que se faz a uma mulher desconhecida, em público, com o intento de avalia-la sexualmente.Mas, esse conceito é muito frio e pode ser relativizado de acordo com o contexto. Eu já diria que a "cantada de rua" é um uso da linguagem que possui essas características mas que serve, como veremos mais tarde, para outros propósitos que não o flerte.

Alguns exemplos práticos definem melhor a "cantada de rua": por exemplo, quando o homem grita, no meio da rua, para a mulher “ô delícia!”, ou mesmo faz gestos obscenos para ela. Esse uso da linguagem já se diferencia do “chegar em mulher”, pois isso pode ser feito respeitosamente (ou mesmo de uma forma “desrespeitosa”, mas que no fundo é respeitosa); assim como se diferencia do “elogio”, afinal, na prática, o que as mulheres estão dizendo é que ele, o uso, não é tomado como elogio, por mais que o conteúdo semântico possa parecer elogioso. É um uso da linguagem que não as agrada e, portanto, de que vale um “elogio” que não agrada?

Eu venho me tornando um cara meio pragmático de uns anos para cá. Sendo assim, a performance de comportamentos, ou métodos, que parecem apontar para um resultado, mas que sempre falham, me causa estranhamento. Desde a minha adolescência, a “cantada de rua” me causa um estranhamento porque, claramente, nenhum dos meus amigos que ficava buzinando, ou mesmo gritando “ô gostosa”, para mulheres na rua ganhou um sorriso sequer em retribuição.

Certo dia, andando de carro com alguns deles, há uns 10 anos atrás, aconteceu deles resolverem ficar buzinando e mexendo com uma moça bonita na rua. Riam a beça. Sinceramente, aquilo nunca havia me incomodado. Todavia, naquele fatídico dia, olhando para aquela moça que simplesmente resolveu ignorá-los, fui tomado por um estranhamento.

Logo de cara reparei que, obviamente, a moça não estava gostando daquilo. Isso por si só já tornaria o comportamento injustificável. Mas, o que me incomodou mesmo foi: se não estava gostando, e o intuito da “cantada” é “cantar”, que diabos está acontecendo? Por que se faz isso se nunca funciona? Na hora, questionei meus amigos sobre isso. Eles me mandaram ir à merda e a história acabou por aí. Entretanto, o problema permaneceu... 

Afinal, se ela, a “cantada de rua”, nunca funciona, porque os homens continuam a usá-la teimosamente? Se a “cantada de rua” falha insistentemente no que seria seu propósito, porque muitos homens insistem em usá-la? Acho que para responder a essa questão é preciso entrar um pouco na psicologia do ato e buscar compreendê-lo.

A tese-resposta que mais gosto a esse respeito tem a ver com a “demonstração de poder”. A “cantada de rua” nunca funciona em seu intuito de “cantar” a mulher, mas ela funciona num outro sentido: resolver algo incômodo no âmago do homem e lhe dar a sensação de que tem o poder. Ficou muito abstrato? Dou exemplo.

Está lá o homem, indo muito bem na sua vida, se sentindo forte, feliz e dono de si mesmo. De repente, ele vê uma gata daquelas. Seu corpo inteiro foge de seu próprio controle: ele transpira, treme, seu olhar é puxado por uma força do além e seu pênis mostra que, na verdade, ele nunca esteve no controle. Ele deixa de ser o dono de si mesmo naquele momento e ele sente isso. A mulher, apenas pela presença dela, ameaçou a estabilidade subjetiva dele. Só que ele sabe que não conseguirá conquistar aquela mulher. Ele se vê impotente.

Nesse momento, ele precisa restabelecer a ordem dentro de si mesmo, precisa reorganizar o caos subjetivo de maneira que ele mesmo se refaça como sujeito do modo que era antes de ver aquela mulher. Como se faz isso? Como muitas espécies de animais fazem: subjugando aquele que, mesmo sem querer, nos subjugou.

Sendo assim, agora ele sente que precisa subjuga-la, pois ela lhe ameaçou em seu poder. Caso não vivêssemos em relações civilizadas, mas no reino animal, provavelmente ele a tomaria a força logo de cara. Todavia, ele não pode fazer isso a princípio. Por isso, mais uma vez ele é tomado pela impotência. Aquele homem “feliz e resolvido”, diante apenas da presença de uma mulher, se tornou o mais impotente e diminuto dos homens. Aliás, ele foi lembrado de sua impotência. Que lhe resta fazer? Tentar outro tipo de dominação: a “cantada de rua”. Então, ele assovia, grita, faz gestos obscenos, chama os amigos para rir junto, tudo isso na tentativa de não só “demonstrar poder” para ela e para os outros que estão com ele, mas para demonstrar para si mesmo que tem o poder, que não é um impotente.

É por isso que a “cantada de rua” insiste em aparecer, mesmo não funcionando como cantada. É porque ela é um mecanismo que tenta dar alguma resolução para a impotência, para o caos subjetivo, que a presença da mulher causa no homem, principalmente o homem impotente. Não estou dando aqui “justificativas naturais” para a “cantada de rua”; estou narrando a sua psicologia. A “cantada de rua” é, na verdade, o corolário da impotência. Nesse contexto, não é cantada, não é flerte, mas sim assédio, demonstração de força...


Mulheres lindas, estando na rua e se fazendo visíveis, estão sempre lembrando a homens impotentes, de “pinto pequeno”, “mal sucedidos”, ou qualquer outra coisa que os faça sentir impotentes, que eles são impotentes. Para esse tipo de homem, nada mais ameaçador que uma mulher linda que fique lembrando-o o quanto ele é fraco e diminuto. Sendo a ameaça e o medo primos da violência, aparece daí o uso da força, da violência física e verbal. Aparece, quase que como um vício violento, a “cantada de rua”.

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