Já é relativo consenso entre as
mulheres. Não importa se ela é feminista declarada ou não: a “cantada de rua” é
uma coisa que, se não é violenta, ao menos é de muito mau gosto. Nesse caso,
meus amigos homens, não adianta ficar querendo espernear, debater, querer fazer
apologia da "cantada", porque a verdade é que elas, as mulheres, não gostam de “cantada
de rua” e ponto final. O caminho inteligente aqui não é ficar esperneando, mas
fazer um esforço compreensivo.
Ontem li um texto intitulado “O que os homens não entendem sobre cantadas”. Nele, a autora buscava inserir o leitor na psicologia feminina diante da “cantada de rua”, quase num esforço empático, dizendo que o que precisa ser entendido é que as mulheres não só tem nojo desse tipo de cantada, como também tem medo: medo do stalker, medo do estuprador e etc. É um medo legítimo, dado o índice de violência contra a mulher e o que elas passam no dia a dia.
Pois bem, aqui eu gostaria de adicionar uma perspectiva. Buscar responder o por que da “cantada de rua”, mesmo não funcionando como cantada, é insistentemente utilizada. Nesse esforço, tentarei dizer também o que homens, e mesmo muitas mulheres, não entendem sobre “cantadas de rua”, mas do ponto de vista da psicologia masculina.
Primeiramente, acho que é preciso
fazer uma distinção, pois a “cantada de rua” já é um gênero específico; é
diferente de “elogio”, ou mesmo de “chegar em mulher”. A “cantada de rua” é um
uso da linguagem específico que todos conhecemos: trata-se da expressão verbal,
ou mesmo corporal, que se faz a uma mulher desconhecida, em público, com o
intento de avalia-la sexualmente.Mas, esse conceito é muito frio e
pode ser relativizado de acordo com o contexto. Eu já diria que a "cantada de rua" é um uso da linguagem que possui essas características mas que serve, como veremos mais tarde, para outros propósitos que não o flerte.
Alguns exemplos práticos
definem melhor a "cantada de rua": por exemplo, quando o homem grita, no meio da rua, para a
mulher “ô delícia!”, ou mesmo faz gestos obscenos para ela. Esse uso da
linguagem já se diferencia do “chegar em mulher”, pois isso pode ser feito
respeitosamente (ou mesmo de uma forma “desrespeitosa”, mas que no fundo é
respeitosa); assim como se diferencia do “elogio”, afinal, na prática, o que as
mulheres estão dizendo é que ele, o uso, não é tomado como elogio, por mais que
o conteúdo semântico possa parecer elogioso. É um uso da linguagem que não as
agrada e, portanto, de que vale um “elogio” que não agrada?
Eu venho me tornando um cara meio
pragmático de uns anos para cá. Sendo assim, a performance de comportamentos,
ou métodos, que parecem apontar para um resultado, mas que sempre falham, me
causa estranhamento. Desde a minha adolescência, a “cantada de rua” me causa um
estranhamento porque, claramente, nenhum dos meus amigos que ficava buzinando,
ou mesmo gritando “ô gostosa”, para mulheres na rua ganhou um sorriso sequer em
retribuição.
Certo dia, andando de carro com
alguns deles, há uns 10 anos atrás, aconteceu deles resolverem ficar buzinando
e mexendo com uma moça bonita na rua. Riam a beça. Sinceramente, aquilo nunca
havia me incomodado. Todavia, naquele fatídico dia, olhando para aquela moça
que simplesmente resolveu ignorá-los, fui tomado por um estranhamento.
Logo de cara reparei que,
obviamente, a moça não estava gostando daquilo. Isso por si só já tornaria o
comportamento injustificável. Mas, o que me incomodou mesmo foi: se não estava
gostando, e o intuito da “cantada” é “cantar”, que diabos está acontecendo? Por
que se faz isso se nunca funciona? Na hora, questionei meus amigos sobre isso. Eles
me mandaram ir à merda e a história acabou por aí. Entretanto, o problema permaneceu...
Afinal, se ela, a “cantada de rua”, nunca funciona, porque os homens continuam a usá-la teimosamente? Se a “cantada de rua” falha insistentemente no que seria seu propósito, porque
muitos homens insistem em usá-la? Acho que para responder a essa questão é
preciso entrar um pouco na psicologia do ato e buscar compreendê-lo.
A tese-resposta que mais gosto a
esse respeito tem a ver com a “demonstração de poder”. A “cantada de rua” nunca
funciona em seu intuito de “cantar” a mulher, mas ela funciona num outro sentido:
resolver algo incômodo no âmago do homem e lhe dar a sensação de que tem o
poder. Ficou muito abstrato? Dou exemplo.
Está lá o homem, indo muito bem
na sua vida, se sentindo forte, feliz e dono de si mesmo. De repente, ele vê
uma gata daquelas. Seu corpo inteiro foge de seu próprio controle: ele
transpira, treme, seu olhar é puxado por uma força do além e seu pênis mostra
que, na verdade, ele nunca esteve no controle. Ele deixa de ser o dono de si
mesmo naquele momento e ele sente isso. A mulher, apenas pela presença dela,
ameaçou a estabilidade subjetiva dele. Só que ele sabe que não conseguirá conquistar aquela mulher. Ele se vê impotente.
Nesse momento, ele precisa
restabelecer a ordem dentro de si mesmo, precisa reorganizar o caos subjetivo
de maneira que ele mesmo se refaça como sujeito do modo que era antes de ver
aquela mulher. Como se faz isso? Como muitas espécies de animais fazem: subjugando
aquele que, mesmo sem querer, nos subjugou.
Sendo assim, agora ele sente que
precisa subjuga-la, pois ela lhe ameaçou em seu poder. Caso não vivêssemos em
relações civilizadas, mas no reino animal, provavelmente ele a tomaria a força
logo de cara. Todavia, ele não pode fazer isso a princípio. Por isso, mais uma
vez ele é tomado pela impotência. Aquele homem “feliz e resolvido”, diante
apenas da presença de uma mulher, se tornou o mais impotente e diminuto dos
homens. Aliás, ele foi lembrado de sua impotência. Que lhe resta fazer? Tentar
outro tipo de dominação: a “cantada de rua”. Então, ele assovia, grita, faz
gestos obscenos, chama os amigos para rir junto, tudo isso na tentativa de não
só “demonstrar poder” para ela e para os outros que estão com ele, mas para
demonstrar para si mesmo que tem o poder, que não é um impotente.
É por isso que a “cantada de rua”
insiste em aparecer, mesmo não funcionando como cantada. É porque ela é um
mecanismo que tenta dar alguma resolução para a impotência, para o caos
subjetivo, que a presença da mulher causa no homem, principalmente o homem
impotente. Não estou dando aqui “justificativas naturais” para a “cantada de
rua”; estou narrando a sua psicologia. A “cantada de rua” é, na verdade, o
corolário da impotência. Nesse contexto, não é cantada, não é flerte, mas sim assédio, demonstração de força...
Mulheres lindas, estando na rua e
se fazendo visíveis, estão sempre lembrando a homens impotentes, de “pinto
pequeno”, “mal sucedidos”, ou qualquer outra coisa que os faça sentir
impotentes, que eles são impotentes. Para esse tipo de homem, nada mais
ameaçador que uma mulher linda que fique lembrando-o o quanto ele é fraco e
diminuto. Sendo a ameaça e o medo primos da violência, aparece daí o uso da
força, da violência física e verbal. Aparece, quase que como um vício violento, a “cantada de rua”.
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