segunda-feira, 16 de junho de 2014

Rodolfo e Raimundos: enriquecer com o errado é certo? Duas perspectivas filosóficas

Há algumas semanas atrás, o ex-vocalista do Raimundos, Rodolfo, juntamente com a sua antiga banda, os Raimundos, foram parar no centro de mais uma polêmica midiática. Em entrevista à revista Trip, Rodolfo, que há mais de uma década saiu da antiga banda e converteu-se à religião evangélica, teria dito que estaria “100% arrependido” das músicas que compôs quando fazia parte dos Raimundos. 


Até aí, nada de muito polêmico, afinal, obviamente as canções dos Raimundos não se adequam muito bem ao código moral cristão-evangélico. Todavia, a polêmica explodiu quando, em resposta à declaração de Rodolfo, os ex-companheiros de banda, Digão e Canisso, que ainda mantêm viva a banda, afirmaram que apesar do ex-vocalista estar arrependido das composições, usufruiria de 100% dos rendimentos de direitos autorais das músicas. Nos portais de notícias, Rodolfo foi chamado de hipócrita por muitos leitores.

A questão aqui, da forma que eu vejo, é: podemos dizer que é certo, ou moralmente correto, enriquecer com o que é tido como moralmente errado, ou imoral?

Há duas grandes escolas em filosofia moral que podem no auxiliar na abordagem dessa questão: kantiana e utilitarista. Na primeira, Rodolfo estaria errado, na segunda, Rodolfo poderia estar certo.

O que diz a escola Kantiana? Conhecida como a que delineia a “ética do dever”, essa linha de pensamento diz que um ato é moral se ele for capaz de ser racionalizado numa máxima sem cair em contradição. Sendo assim, um ato é moral se puder ser testado da seguinte maneira: “age só segundo máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal”.

Sob a ótica da ética do dever, Rodolfo estaria errado. Retomemos a pergunta inicial da polêmica: “podemos dizer que é certo, ou moralmente correto, enriquecer com o que é moralmente errado, ou imoral”? Isso poderia se traduzir na seguinte lei universal: “é correto enriquecer com o que é moralmente incorreto”. Ora, o problema é que se todos agem dessa forma, todos irão acabar incorrendo no que é imoral e, portanto, a máxima não passa no teste. Enriquecer com o que se pensa moralmente errado é imoral, nesse pensamento. 

Todavia, há uma outra perspectiva, a do chamado utilitarismo. Diferentemente da perspectiva kantiana, no utilitarismo o que é moral não é dado a priori da ação, mas sim depende das consequências da ação. Por isso, se a ética kantiana é chamada de “ética do dever”, a utilitarista é chamada “ética consequencialista”. O raciocínio moral utilitário é o seguinte: um ato é moral quando as consequências que dele advém maximizam a felicidade (prazer, utilidade).  Torturar um terrorista para salvar mil pessoas é correto? Segundo a ética do dever, não, pois torturar é errado a priori da ação, porém, segundo a ética consequencialista do utilitarismo, é correto, pois salvar mil gera mais felicidade, e bem estar, do que não torturar esse um e deixar mil morrerem. Nesse quesito, tanto a moral Kantiana quanto o liberalismo político, ao falar de direitos básicos, travam a tortura por ela mesma. Já o utilitarismo, leva em consideração as consequências e o bem-estar do máximo de indivíduos e pode pensar a questão de outra forma.

Sob a perspectiva utilitária, a pergunta muda e Rodolfo até pode estar certo. Como não há errado e certo a priori da ação, somente pelas consequências da ação, a pergunta passa a ser: as consequências do enriquecimento através de algo que se considera errado trazem mais bem estar do que se esse algo não enriquecesse o individuo em questão? Ou, mais especificamente, pensando como Rodolfo: a minha antiga música faz mal, mas o meu enriquecimento com ela trás mais bem estar do que se eu não enriquecesse com ela, dado que com esse dinheiro, posso pregar a boa palavra e fazer o bem. Portanto, já que os Raimundos continuará tocando de qualquer forma, é mais útil, traz mais bem estar geral, que eu enriqueça com essa música e use o dinheiro para o bem cristão, para pregar, do que se eu não enriquecesse.


Portanto, no utilitarismo há essa possibilidade de Rodolfo estar fazendo a coisa certa, todavia, seria necessário adotar o utilitarismo no interior da moral cristã, o que é coisa muito complicada, dado que esse código moral se aproxima mais de deveres dados a priori do que de consequencialismo. Caso o cristianismo passasse a ser mais utilitarista, poderia-se contrariar os dez mandamentos quando isso gerar mais bem estar, por exemplo.

Além disso, para se considerar como certo que pregar a palavra traz mais bem estar geral do que as músicas do Raimundos, seria necessário adotar a perspectiva cristã. Fora do cristianismo, há quem fosse defender que a música dos Raimundos trás mais felicidade que o trabalho de Rodolfo na igreja, algo de difícil averiguação. Defender Rodolfo não é tarefa fácil.

Sendo assim, caso Rodolfo tivesse inventado o cigarro, mas se converte-se ao movimento anti-tabagista, porém continuando a receber royalties da invenção do cigarro, há quem o condene por isso, pela contradição de enriquecer pelo que se acha moralmente errada, e há quem diga que Rodolfo poderia estar correto contanto que o uso que ele faça do enriquecimento no seu trabalho antitabagismo maximize a felicidade. Esses são os kantianos e utilitaristas.

No fim das contas, sob o ponto de vista cristão, apesar de que “só Deus poderá julgá-lo”, pregar uma coisa e fazer o contrário, apesar das consequências, é tido como hipocrisia, pois para pregar deve-se prezar pela autoridade moral de fazê-lo. Nesse quesito, creio que Rodolfo continua errado e deveria abandonar os royalties que recebe por direitos autorais. Ficaria muito feio o cristianismo adotar um utilitarismo por conveniência.

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